A história da civilização humana é uma lenda de esforço cumulativo. Cada geração constrói a partir do trabalho daqueles que vieram antes. Às vezes o trabalho vai num destino contrário. Às vezes vagamos para becos sem saída. Mesmo assim, estamos sempre batalhando. Pouco a pouco, nossas espécies conseguem progredir. O progresso pode ser gradual ou um enorme passo à frente, de qualquer forma ele sempre surge a partir das realizações daqueles que vieram antes de nós.
Em nenhum outro lugar essa natureza do progresso em camadas é mais aparente do que na história da tecnologia. Mesmo as maiores rupturas do avanço tecnológico só são possíveis quando existe algum trabalho para servir como base.
A prensa de Gutenberg não seria inventada se não houvesse o trabalho de terem criado a prensa parafuso usada para a feitura de vinhos. Tecnologias não são criadas de forma isolada. Elas possuem rastros dos fantasmas de seu passado.
O desenho do teclado QWERTY do seu computador—e do software equivalente no seu celular—é um eco do design da primeira geração de máquinas de escrever. Essa ordem de teclas foi escolhida para reduzir a chance das peças mecânicas de metal se colidirem conforme elas pulavam a frente para deixar sua marca no papel.
Os ponteiros de um relógio só se movimentam na direção horária porque é a direção do trajeto da sombra em um relógio de sol durante um dia no hemisfério norte. Se a história fosse diferente, com a civilização do hemisfério sul sendo dominante, os ponteiros dos nossos relógios se movimentariam na direção oposta. Quanto a razão dos relógios marcarem o tempo em períodos de 24 horas, cada um com 60 minutos e cada minuto possuindo 60 segundos, isso é graças a uma civilização antiga dos Sumérios. Eles decidiram usar o número 60 como base para fazer contas e no comércio. É o menor número que pode ser igualmente dividido pelos primeiros seis números. A forma sexagésima de contar ainda está no nosso cotidiano, nas horas, minutos e segundos que usamos como modelos conceituais para subdividir uma rotação do nosso planeta.
Esses ecos do passado reverberam no presente mesmo que a utilidade dela tenha sido perdida. Você ainda vê uma interface de usuário que mostra um ícone de um CD ou disco de vinil para representar música. A mesma interface que usa uma imagem de um disquete de 3½ polegadas para representar o conceito de salvar dados. Disquetes foram projetados com 3½ polegadas de tamanho para que coubessem em um bolso de camisa social. Os ícones nas interfaces dos nossos softwares são sussurros da história do vestuário e da moda.
O progresso científico seria impossível sem que houvesse uma história compartilhada sobre aprender a criar. Assim como Sir Isaac Newton disse, se conseguimos enxergar mais longe, foi porque nos apoiamos nos ombros dos gigantes.
Quando o conhecimento é passado de uma geração para a outra, teorias se tornam mais refinadas, unidades de medida são padronizadas e experimentos aumentam em precisão.
No presente momento, os experimentos mais fundamentais da humanidade são conduzidos sob a fronteira entre Suíça e França. É onde fica o CERN, a Organização Européia de Pesquisa Nuclear. O Grande Colisor de Hádrons (LHC) possui um anel de colisão que possui cerca de 8,6km de diâmetro, onde prótons estão sendo unidos em velocidades que se aproximam da velocidade da luz. Nossas espécies primatas estão recriando as condições desde início do nosso universo. O LHC é o maquinário mais complexo que já foi construído.
A engenharia imponente do LHC é correspondida pelos níveis sem precedentes da cooperação internacional por trás do CERN. O acelerador de partículas se tornou operacional na primeira década do século 21, mas sua base foi construída há mais de meio século. Isso aconteceu quando um grupo de nações se juntaram para criar a Convenção CERN, dedicando recursos e dinheiro para a pesquisa científica pura. O único retorno esperado do investimento era na moeda do conhecimento.
Esse trabalho de base criou um ambiente particular, livre das limitações das hierarquias nacionais, econômicas e sociais. Físicos que outrora foram vencedores de prêmios Nobel colaboraram com estudantes em estágios de verão. Se há um elemento de categorização social no CERN, é apenas entre teóricos e experimentalistas. Os teóricos são aqueles com quadros negros em seus escritórios. Os experimentalistas são aqueles que possuem computadores. Eles têm que lidar com grande quantidade de dados. Mesmo antes de terem ligado o LHC, gerenciar informações era um grande desafio no CERN.
Surge Tim Berners-Lee, um cientista da computação inglês que trabalhava no CERN na década de 1980. No começo daquela década, ele iniciou um projeto pessoal para lidar com afinco essa questão de organizar informações. O resultado desse esforço foi chamado de ENQUIRE, nome inspirado num manual da era Vitoriana com conselhos sobre a vida chamado Enquire Whitin Upon Everything.
No fim dos anos 1980, Tim Berners-Lee estava pronto para enfrentar o espinhoso problema de gerenciamento de informação numa escala maior. No intuito de participar mais do CERN, ele produziu um documento simples com o título Information Management: A Proposal. Mike Sendall, seu supervisor, felizmente reconheceu o potencial da ideia e deu o sinal verde rabiscando "vago, porém empolgante..." no topo do relatório. Essa proposta se tornaria a World Wide Web.
Hoje pensamos a World Wide Web como uma das maiores invenções da história da comunicação, mas para os cientistas do CERN ela é meramente um subproduto. Quando você está lidando em escalas do tempo cosmológico e investigando os blocos de construção da própria realidade, a linha do tempo do relacionamento da humanidade com a tecnologia é só um pouco mais do que um erro de arredondamento.
Quando Tim Berners-Lee decidiu trazer o problema de gestão de informações do CERN pra si, a internet já estava estabelecida como parte da infraestrutura de lá. Essa rede de redes foi criada na década de 1960 e os primeiros a adotarem foram universidades e instituições científicas.
Esses pontos estavam fisicamente conectados através de cabos de telefonia. Ao invés de construir uma nova rede do zero, fazia mais sentido usar aquilo que já existia. Mais uma vez, uma nova tecnologia só foi possível pela existência de outra mais antiga. No século 19, o mundo era tecnologicamente terraformado pelo telégrafo. Através dos surpreendentes feitos da engenharia, nosso planeta foi cabeado utilizando cabos submarinos. Esses mesmos cabos mais tarde seriam reutilizados para transmitir sinais telefônicos. Mais tarde, de novo, eles transmitiriam os zeros e um digitais da internet. Hoje, esses sinais são transmitidos através pulsos de luz que viajando através de cabos de fibra óptica. Esses cabos de fibra óptica seguem os mesmos caminhos através o solo do oceano assim como seus antecedentes do telégrafo.
A internet não possui um centro. Essa decisão arquitetural que concede a rede a sua robusteza. Você pode ter ouvido que a internet foi projetada para resistir a um ataque nuclear. Isso não é totalmente correto. É verdade que o projeto começou com interesses militares. A pesquisa inicial foi bancada pela DARPA, a Agência de Projetos de Pesquisa Avançada de Defesa dos EUA. Mas os engenheiros que trabalharam no projeto não eram funcionários militares. Os seus ideais estão mais próximos da militância pela liberdade de expressão do que com o complexo militar-industrial. Eles planejaram a rede para desviar de possíveis danos, mas os danos que eles se preocupavam eram provenientes da censura, não de um ataque nuclear.
A arquitetura aberta da internet refletia a visão de mundo liberal de seus criadores. Tal qual sua descentralização, a internet também foi projetada deliberadamente para ser uma rede burra. Esse é o seu grande segredo. Os protocolos que são responsáveis pela transmissão de dados da internet—TCP/IP-descrevem como os pacotes de dados devem ser movimentados por aí, mas esses protocolos pouco se importam com o conteúdo deles. Isso permite que a internet seja o mecanismo de transporte de vários tipos de aplicações: email, Telnet, FTP e eventualmente a World Wide Web.
A web utiliza HTTP, o Protocolo de Transferência de Hipertexto, para enviar e receber dados. Os dados são identificados de forma única com uma URL. Muitos dessas URLs identificam páginas feitas com HTML, a Linguagem de Marcação de Hipertexto. A característica mais importante da web reside no simples elemento "A" do HTML. O "A" significa Âncora. O seu atributo "HREF" permite que você navegue de uma URL para outra URL, criando o link que pode ser atravessado de uma página para a outra. Esse links transformam a web de ser um sistema direto de armazenamento e busca em um sistema de hipertexto.
Tim Berners-Lee não inventou o hipertexto. O termo foi cunhado por Ted Nelson, um cientista da computação visionário que estava trabalhando em seu próprio sistema de hipertexto chamado Xanadu. Tanto Ted Nelson quanto Tim Berners-Lee foram influenciados pelas ideias definidas por Vannevar Bush em seu ensaio seminal de 1945, "As We May Think". Bush, sem sombra de dúvidas, estava sob influência das ideias do especialista de ciência da informação Paul Otlet, originário da Bélgica. Cada um desses gigantes da história do hipertexto estavam apoiados no ombros dos gigantes que vieram antes eles. Gigantes para todos os lados.
Comparados com as visões grandiosas a respeito do hipertextos, o conceito de links na web é tão simples que quase chega a ser cômico. Não existem links que são vias de mão dupla. Não é possível saber se o link que você criou para outro URL existe ou se a página mudou de endereço.
Entretanto, a simplicidade da web acabou se tornando o segredo de seu sucesso.
Tim Berners-Lee presumiu que a maioria das URLs apontaria para recursos que não são HTML; documentos de editores de texto, planilhas e todos os outros tipos de arquivos de computador. Com a linguagem seria possível criar um índice de páginas simples para que apontasse para esse arquivos utilizando os links. Isso porque HTML não precisava fazer muito e possuia um vocabulário limitado, facilitando o aprendizado. Para a surpresa de Tim Berners-Lee, as pessoas começaram a criar documentos completamente desenvolvidos em HTML. Ao invés de criar em outros formatos e utilizar a HTML para conectá-los, as pessoas começaram a criar o conteúdo diretamente em HTML.
HTML não foi a primeira linguagem de marcação utilizada no CERN. Os cientistas de lá já estavam compartilhando documentos escritos em SGML—Linguagem de Marcação Generalizada e Padrão. Tim Berners-Lee pegou esse vocabulário já existente proveniente da CERN SGML e o utilizou como ponto de partida para sua nova linguagem de marcação. Mais uma vez, fez sentido criar algo a partir do que as pessoas já conheciam ao invés de construir algo do zero.
A primeira versão da HTML continha o número digno de 21 elementos. Muitos desses elementos estão ainda conosco nos dias de hoje—TITLE, P, UL, LI, H1, H2, etc. e é claro, o elemento A. Outros foram deixados de lado—ISINDEX, PLAINTEXT, LISTING, HP1, HP2, etc., assim como o elemento proprietário chamado NEXTID que só fazia sentido se você estivesse utilizando um computador que possuísse o sistema operacional NeXTSTEP. Esse foi o sistema operacional que Tim Berners-Lee estava utilizando quando criou HTTP, HTML e o primeiro navegador web do mundo, batizado de forma confusa como WorldWideWeb, o qual só funcionava nas máquinas NeXT.
Para demonstrar o poder e a interoperabilidade da web, um navegador com compatibilidade em diversas plataformas era necessário; um que qualquer pessoa pudesse instalar e utilizar, independente do sistema operacional que estivesse utilizando. A tarefa de construir esse navegador caiu nas mãos de uma estudante que estava no CERN chamado Nicola Pellow. Ela criou o Line Mode Browser. Era simples, porém poderoso. Não possuia o mesmo nível de interativade que o WorldWideWeb browser, mas o fato de poder ser executado em qualquer máquina significava que agora a web era acessível por qualquer pessoa.
Assim que dois navegadores web estavam disponíveis, a interoperabilidade e a compatibilidade retroativa passaram ser questões importantes. Por exemplo, o que o Line Mode Browser faz quando encontra um elemento HTML que não conhece, como NEXTID?
A resposta pode ser encontrada na rasa documentação que Tim Berners-Lee escreveu para sua coleção inicial chamada HTML Tags. Abaixo do título "Next ID", ele escreveu:
"Navegadores podem ignorar esse elemento."
Essa decisão, que parece ser inócua, teria consequências de longo alcance para o futuro da World Wide Web.
A expressão "Net value" utilizada pelo autor pode ter o significado ao pé da letra de "valor da rede", mas também pode significar "valor líquido", expressão do âmbito financeiro que refere a um valor deduzido de seus descontos. A expressão "Mark me up, mark me down" também pode ter vários significados, como "Preste a atenção em mim", "Deixe uma marca em mim" e se relaciona com o fato da HTML ser uma linguagem de anotação.
Decidi por não traduzir as expressões pois são analogias inteligentes que o autor utilizou para ilustrar o assuntos e que infelizmente perderiam o sentido ao trazê-las para a língua portuguesa.